Revista Partes - Especial sobre Assédio Moral |
Identificando o Assédio Moral no trabalho Carolina de Aguiar Teixeira Mendes |
Segundo o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a palavra “assédio” significa “insistência impertinente, perseguição, sugestão ou pretensão constantes em relação a alguém”.[1]
Ultimamente, tem-se ouvido muito falar em assédio moral, embora não seja grande novidade na história da humanidade. Mas, afinal, o que é assédio moral no trabalho? Você conseguiria identificar se está sendo vítima desse mal?
Segundo a médica Margarida Barreto, médica do trabalho e ginecologista, assédio moral no trabalho é “a exposição dos trabalhadores e trabalhadoras a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções, sendo mais comuns em relações hierárquicas autoritárias e assimétricas, em que predominam condutas negativas, relações desumanas e aéticas de longa duração, de um ou mais chefes dirigida a um ou mais subordinado(s), desestabilizando a relação da vítima com o ambiente de trabalho e a organização, forçando-o a desistir do emprego”[2].
Primeiramente, fala-se em “exposição dos trabalhadores e trabalhadoras a situações humilhantes e constrangedoras”. O trabalhador deve se sentir extremamente rebaixado, oprimido, ofendido, inferiorizado, vexado e ultrajado pela ação do assediador, que o persegue e o importuna.
Para citar um exemplo de humilhação no trabalho, apresentaremos um processo iniciado na 4a Vara do Trabalho de São Bernardo do Campo, com posterior Recurso Ordinário dirigido ao TRT/SP, no qual a empresa foi condenada a indenizar a reclamante por danos morais. [3]
Consta dos autos que a vítima vendia cotas para um consórcio e recebia tratamento desrespeitoso por parte de seus superiores, no intuito de vender e atingir metas. Eles aconselhavam-na a “sair com clientes” ou “vender o corpo”, além de agredir verbalmente não só à reclamante, mas também aos vendedores que não alcançavam as metas, fazendo comentários irônicos, aplicando advertências, e tratando-os de forma extremamente grosseira, inclusive com xingamentos. Tudo acontecia na presença de outros funcionários, os quais serviram de testemunha no decorrer do processo.
Indiscutivelmente, havendo laudo clínico ou não, a reclamante teve sua saúde psicológica afetada, além de sua vida profissional e privada. Não houve respeito algum por parte dos superiores à sua “dignidade humana”, posto ter sido “exposta ao ridículo” e tratada como simples objeto, e não como trabalhadora que era.
O assédio moral restou caracterizado pelo desrespeito à honra, moral e dignidade da trabalhadora. Houve, ainda, patente discriminação à figura da mulher, como se devesse estar à disposição de qualquer demanda do homem. Assim, consagrou-se evidente seu direito em requerer indenização por danos morais, a qual lhe foi concedida no valor de dez vezes o valor recebido normalmente no trabalho.
Dando continuidade à análise do conceito de assédio moral, ressalta-se que a exposição a esse tipo de situação deve ser “repetitiva e prolongada durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções”.
Para bem ilustrar o assunto, citaremos o caso de Denise Gomes, 50 anos, professora em Belo Horizonte, cujo depoimento foi dado à Revista Veja, e publicado na Edição 1913, de 13 de julho de 2005. Através de ação judicial, a professora obteve a rescisão do contrato de trabalho, além de indenização no valor de 25 mil reais. Vejamos as declarações de Denise:
“Entre 2004 e 2005, fui moralmente assediada por coordenadores do departamento da universidade onde trabalhei até o mês passado. Depois de um período de afastamento, encontrei um ambiente hostil. Deram-me um horário irracional. Em um dia, tinha de trabalhar doze horas ininterruptas. Quase todos os dias, recebia ofícios de advertência, sem que nada tivesse feito de errado. Elegi-me para uma comissão de prevenção de acidentes e passei a ser ainda mais humilhada. Deram-me atividades de orientação de estagiários, com a justificativa de que eu não tinha qualificação para dar aulas. Numa reunião, o coordenador agrediu-me aos berros na frente de colegas e funcionários. Cheguei a ser colocada numa salinha, sem nada para fazer. Nesse processo estressante, adoeci e voltei a sofrer convulses depois de 24 anos sem ter esse problema. Também perdi mais da metade da minha renda.” [4]
Extrai-se do depoimento da senhora Denise que a humilhação acontecia na universidade, ou seja, em seu ambiente de trabalho e, ainda, no exercício de suas funções. Ademais, o assédio era repetitivo, acontecendo quase diariamente, além de prolongado, posto ter ocorrido por vários meses, entre 2004 e 2005.
Explica, ainda, Margarida Barreto, ser a perseguição mais comum em relações hierárquicas autoritárias e assimétricas[5], predominando condutas negativas, relações desumanas e aéticas de longa duração, de um ou mais chefes dirigida a um ou mais subordinado(s).
Segundo o dicionário Houaiss, relações assimétricas seriam relações desiguais, desproporcionais e diferentes, ou seja, desarmônicas.
Apesar do assédio moral no trabalho ser mais comum em relações hierárquicas, ou seja, de chefe(s) para subordinado(s), há ainda casos de colegas de trabalho que assediam a outros colegas.
Na mesma edição da Revista Veja estão as declarações de Ronaldo Nunes Carvalho, 37 anos, na época vendedor em uma cervejaria em Porto Alegre. Vejamos:
“Durante um ano e quarto meses vivi num inferno, como vendedor de uma companhia de bebidas. A ordem da gerência era ridicularizar quem não cumpria as metas. Nas reuniões que precediam as nossas saídas para a rua, cada vendedor relatava os resultados do dia anterior. Quando eu era um dos que não tinham alcançado a meta, me via obrigado a pagar prendas, como subir na mesa e fazer flexões. Ao mesmo tempo, meus colegas eram instigados pelos gerentes a passar as mãos nas minhas nádegas. Às vezes, era obrigado a desfilar de saias ou passar por um corredor polonês formado pelos colegas, puvindo palavrões e ofensas, como ‘burro’ e ‘imprestável’. Em seguida, eu ia para o banheiro e chorava escondido. Um dia de trabalho depois disso era o maior sacrifício. Em casa, vivia estressado, brigava com a minha mulher. Estava a ponto de explodir.” [6]
Perguntamos: os colegas eram obrigados a humilhá-lo? A resposta pode ser: “Sim, ou ele(s) perderia(m) o emprego”. Discordamos.
Analisando filosoficamente, Sócrates acreditava que era melhor sofrer o mal que infligi-lo. Hannah Arendt, uma das filósofas mais importantes do século XX, em seu livro “Responsabilidade e Julgamento”, nos explica tal pensamento:
“Se somos confrontados com dois males, assim reza o argumento, é nosso dever optar pelo menor, ao passo que é irresponsável nos recusarmos a escolher.” [7]
Ou seja, entre perder o emprego e humilhar o colega, prefere-se o mal menor de acordo com sua acepção: humilhar o colega.
E Arendt expressa sua discordância com a assertiva de Sócrates:
“Esse argumento é um dos mecanismos embutidos na maquinaria de terror e criminalidade. A aceitação de males menores é conscientemente usada para condicionar os funcionários do governo, bem como a população em geral, a aceitar o mal em si mesmo.”
(…)
“Infelizmente, parece ser muito mais fácil condicionar o comportamento humano e fazer as pessoas se portarem de maneira mais inesperada e abominável do que convencer alguém a aprender com a experiência, como diz o ditado; isto é, começar a pensar e julgar em vez de aplicar categorias e fórmulas que estão profundamente arraigadas em nossa mente, mas cuja base de experiência foi esquecida há muito tempo, e cuja plausibilidade reside antes na coerência intelectual do que na adequação e acontecimentos reais.” [8]
Tanto a gerência quanto os outros funcionários assediaram moralmente a Ronaldo. Se os colegas de trabalho da vítima tivessem usado da faculdade humana de pensar, poderiam julgar a situação de acordo com suas experiências e desobedecer as chamadas “ordens superiores”. Se não o fizeram, é porque estavam/foram condicionados a concordar com o que lhes foi ordenado, e preferiram o mal menor (a humilhação do colega) à demissão individual e/ou coletiva.
Pensar não é uma atitude mecânica, mas um diálogo silencioso e profundo do homem consigo mesmo, que leva a uma decisão de acordo com a moral. Se tivessem parado para “pensar” (conforme o exposto acima), chegariam à conclusão de que seriam incapazes de conviver consigo (lê-se: por se constatarem, então, malfeitores) para o resto de suas vidas.
Neste sentido, para Hannah Arendt:
“…o pensamento que devemos lembrar é uma atividade, e não o desfrute passivo de algo.
(…)
“A moralidade diz respeito ao indivíduo na sua singularidade. O critério de certo e errado, a resposta à pergunta: “O que devo fazer?”, não depende, em última análise, nem dos hábitos e costumes que partilho com aqueles ao meu redor nem de uma ordem de origem divina ou humana, mas do que decido com respeito a mim mesma. Em outras palavras, não posso fazer certas coisas porque, depois de fazê-las, já não serei capaz de viver comigo mesma.” [9]
Mas para a sociedade atual, é muito mais “fácil” não pensar e, sim, simplesmente agir condicionadamente pelo meio externo e pela correria cotidiana. Assim, “pensar dá muito trabalho” e “é trabalho de filósofos”: eis o estereótipo que impera. Não é assim que dizem?
Bem, sobre o caso de Ronaldo, este foi indenizado no valor de R$21.600,00 (vinte e um mil e seiscentos reais), quantia considerável nos tempos atuais. Porém, dinheiro algum nesse mundo é capaz de pagar o sofrimento físico e psicológico da vítima, cujas marcas podem permanecer por uma vida inteira.
Ainda segundo os estudos da Dra. Margarida no trabalho retro mencionado, a intenção do assediador moral seria “desestabilizar a relação da vítima com o ambiente de trabalho e a organização, forçando-o a desistir do emprego”.
Quem agüentaria ficar num ambiente de trabalho onde todos caçoam de suas atitudes? A demissão voluntária traz menos despesas à empresa, obviamente. É muito cômodo colocar o funcionário numa posição desconfortável a ponto dele mesmo “pedir as contas”.
Devemos diferenciar o assunto aqui tratado com “a natural pressão decorrente do mercado cada vez mais competitivo do mundo globalizado, ou o exercício regular do direito do empregador exigir produtividade de seus empregados.”[10]
Isso quer dizer que a pressão do dia-a-dia na empresa, a correria, as intermináveis tarefas, geralmente em nada têm a ver com o assédio. Estamos vivendo num mundo globalizado que tem uma de suas características a competição real e a tendência de correr para não ficar para trás. Essa é a realidade não só empresarial, mas, principalmente, no setor público.
A situação é bem diferente quando o chefe ou mesmo o colega de trabalho começa a agir de maneira a humilhar e rebaixar ao outro. Aí deve-se ficar atento para não cair numa cilada emocional que pode destruir emprego, convivência social e familiar, e até mesmo a própria vida.
Os danos que o assédio moral pode causar ao empregado são seríssimos. Também conhecido como síndrome del acoso institucional, acoso moral, psicoterror, coação moral ou mobbing, o assédio moral no trabalho ultrapassa não só as fronteiras internacionais, como também qualquer categoria profissional. Médicos, advogados, operários, vendedores, representantes comerciais, diaristas, não há preferência profissional na desta perversidade.
A vítima pode sofrer “danos emocionais e doenças psicossomáticas, como alterações do sono, distúrbios alimentares, diminuição da libido, aumento da pressão arterial, desânimo, insegurança, entre outros, podendo acarretar quadros de pânico e de depressão. Em casos extremos, pode levar à morte ou ao suicídio.”[11] Ademais, a capacidade laborativa do empregado é extremamente atingida.
O assédio moral dá direito à rescisão indireta. O trabalhador ainda pode pedir indenizações morais e/ou materiais. Para tanto, faz-se necessária consistente coleta de provas. Eis aí a parte mais difícil: como provar? A dificuldade existe por tratar-se de uma violência sutil, psicológica, e não física. Acontece quase que de maneira “invisível”.
Meras alegações de nada valem ao Judiciário. A este interessa somente as provas, cuja coleta pode transforma-se em grande teste de paciência ao assediado. Tão logo a vítima perceba que está sendo assediada moralmente, deve reunir documentos escritos pelo assediador, como e-mails, cartas e bilhetes, além de laudos médicos, cartões de ponto, e quaisquer outros documentos que provem uma perseguição. Gravações das ofensas do malfeitor diretamente à vítima também são possíveis. Outra prova importantíssima são as testemunhas, que podem comprovar gestos, comportamentos e palavras relativas ao assédio. Recomendável também é procurar um advogado para melhor aconselhar-se na questão probatória.
É relevante mencionar que as conseqüências de tamanho abuso atingem não apenas ao assediado, mas sim a toda a coletividade, violando os direitos à saúde e à dignidade humana, o que evidencia a gravidade do fato.
Ademais, há conseqüências para a própria empresa (como a baixa produtividade, por exemplo), e ainda para os governos, uma vez que as enfermidades dos trabalhadores resultam em gastos de atenção sanitária e seguridade social.
No sentido de combater este mal, a legislação ainda não é completa, existindo apenas poucas leis e alguns projetos de normas jurídicas, além das Sentenças Judiciais de Tribunais de diferentes instâncias começarem a servir de precedente judicial e jurisprudencial.
Andrea Fabiana MacDonald, advogada argentina, expõe em seu artigo “Um novo fenômeno no Direito do Trabalho: mobbing ou violência trabalhista”, algumas soluções propostas pela OIT (Organização Internacional do Trabalho), entre as quais a solução preventiva:
“Soluções preventivas: que tomem em conta a origem da violência, e não somente seus efeitos;” [12]
A OIT entende que não adianta apenas criticar o malfeitor, indenizar as vítimas, gastar “rios” de dinheiro com a atenção sanitária e seguridade social; é necessário agir na fonte, na raiz, para que essa árvore não cresça mais. Precisamos entender as causas/motivações que levam o assediador a agir de determinada maneira é essencial para que as ações sejam de fato eficazes no combate ao assédio moral.
Não encontraremos, porém, a resposta mágica para a questão “como erradicar o assédio moral da sociedade”. Devemos entender o que se passa na mente do malfeitor para que possamos trabalhar as causas do mal, motivar a reflexão dos legisladores, e quem sabe até conscientizar os assediadores no sentido de mudarem seus valores e caráter.
Assim nos ensina o Prof. Jorge Luiz de Oliveira da Silva:
“De uma forma ou de outra, qualquer que seja o perfil do assediador, tudo converge para uma mesma constatação: é ele um fraco, porque demonstrou ser incapaz de construir sua própria felicidade, deixando de praticar atitudes que o conduziriam à conquista do bem.” [13]
Para atingirmos tal objetivo, faz-se necessária uma pesquisa interdisciplinar (Filosofia, Psicologia, Psiquiatria e Direito) no sentido de abrir os caminhos científicos e alcançar seu pleno desenvolvimento. Estes são os primeiros passos para a conquista de um bom ambiente de trabalho, onde haja respeito ao trabalhador e à cidadania.