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"Numa época de dissimulação, falar a verdade é um ato revolucionário." (George Orwell)

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Homenagem ao Che (Parte 1)

DOMINGO. 7 DE OUTUBRO DE 2007 O ESTADO DE S.Paulo

Che, O imaginário do sacrifício

Guevara morto inaugurou o novo testamento de uma nova práxis política: o marxismo latino, moreno e místico

José de Souza Martins

Os meses e anos seguintes àque­le meio de tarde de 9 de outubro de 1967, quando Ernesto Che Guevara foi executado sumaria­mente por um tenente do exército boliviano, revelariam alguns dos vários mistérios que esta­vam contidos muito mais naquela morte do que naquela vida.

Naquele momento, ali na ma­ta, na encosta dos Andes, no em­blemático limite que separa a planície da montanha, a Améri­ca branca da América indígena, e que separa também a América guarani da América quéchua, começaram várias agonias. A começar por seus algozes dire­tos, a maioria dos quais morre­ria de forma estranha e inespe­rada nos anos seguintes, como que executados pela espada de fogo de um vingador invisível.

- A rajada de fuzil no corpo do Che rasgou o véu do templo de nossas certezas, do alto até em­baixo, libertando os medos e as contradições do nosso imaginá­rio político místico. Um novo testamento se abriu na memó­ria e na história dos povos latino­ americanos, no marco de um realismo mágico difuso e persistente. Era o incompreendido no­víssimo testamento de uma no­va práxis política, de uma comu­nhão de sangue entre a fé e a política, o misticismo de uma re­primida esperança, messiânica e milenarista.

A morte de Che desdisse mui­ta coisa que ele não queria pes­soal e conscientemente desdi­zer e disse muita coisa que ele não sabia estar dizendo. Che dis­se aos seus captores que valia mais vivo do que morto. Para o misticismo político latino-ameri­cano ele valia mais morto do que vivo. Porque só os mortos do sa­crifício humano podem ressuscitar e entrar na eternidade das esperanças milenaristas tão pró­prias desta América sem rumo. "Saio da vida para entrar na his­tória", escreveu Getúlio Vargas, quando Se encontrava no pórti­co da morte. São poucos os que tem a coragem moral e cívica de abandonar as conveniências mesquinhas do agora e enfren­tar essa passagem tenebrosa, quando ela se impõe, para servir ao povo na imortalidade genero­sa do sempre: Getúlio, Che, Al­lende. Eles sabiam que iam mor­rer porque o que personifica­vam neste mundo estava mor­rendo. Pouco importa se deles discordamos ou com eles concor­damos. No reino do sempre e da esperança não há fraturas, não é ele um mundo racional e lógico. O milenarismo latino-ameri­cano se expressa no rústico de libertações assim, que abrem a partir do mundo dos mortos a porta imaginária das inversões e as conversões, da busca da esperança nos contrários do que a morte rompeu. Quando o cadáver de Che Guevara chegou a La Higuera, para a autópsia e a injeção de formol que o preservaria, da pequena multidão fazia parte uma freira, de hábito branco, que aparece nas fotos, que ria o tem­po todo, misturada com milita­res, jornalistas e agentes da CIA, testemunhou o jornalista inglês Richard Gott, enviado pe­lo Guardian. O riso da freira ex­pressava a satisfação anti-co­munista de quem fora educada na religiosidade anacrônica de um mundo dividido entre o bem do capitalismo e o mal do comu­nismo. Mas aproximou-se do grupo, também, uma campone­sa que gritava "Assassino!", eco da propaganda militar na área. Ao ver o rosto do Che, silenciou e disse: "Meu Deus! Como ele era bonito!" Uma das fotos do corpo de Che, feitas na ocasião, foi difundida e interpretada co­mo o retrato de um Jesus Cristo latino-americano. Os católicos progressistas se tornariam os principais apóstolos dessa res­surreição simbólica. A morte de Che também con­sumou a ruptura interior da es­querda, isolou simbolicamente os partidos comunistas, esva­ziou o seu apelo proletário para dotar o inconformismo social dos pobres de uma mística sa­crificial que tem em Che o cor­deiro da história. Inverteu o nos­so imaginário de esquerda, fa­zendo da tradição popular e con­servadora, comunitária, religio­sa e anti-capitalista, o cerne de um novo socialismo, crioulo e popular, tendente ao étnico invertido. Nele, mestiços, índios e negros invertem imaginaria­mente a pirâmide social iníqua e branca, num projeto social e político de meios tons políticos, meios tons sociais, meios tons religiosos, meios tons econômi­cos, meios tons raciais. Na captura e morte de Che começou a sucumbir o marxis­mo mecanicista de Louis Al­thusser, viabilizado pela aventu­ra intelectual de classe média de Régis Debray, um dos primei­ros prisioneiros dos militares bolivianos. Místicos ambos, criaram e viabilizaram um mar­xismo tomista e departamenta­lizado, anti-marxiano, ideologi­camente útil às aventuras de classe média que se quer liberta­dora. A teoria do foco, de De­bray, da guerrilha dos desgarra­dos da elite, que desencadeia a revolução dos pobres, também morreu na quebrada do Yuro. A guerrilha de Che Guevara não se propunha a realização de uma revolução camponesa, a re­volução dos pobres na Bolívia, como se supõe ainda hoje. Era apenas uma extensão geopolíti­ca da Revolução Cubana, na perspectiva por ele proclamada de criar vários Vietnãs e por em xeque o poderio americano. No fim, Che lamentava não ter se aproximado dos camponeses da área 'da luta. Era tarde. Eles temiam os guerrilheiros. Por medo ou prudência, os delata­vam ao exército. Ou fugiam, abandonando as plantações e as casas. Mas a guerrilha não tinha neles a menor confiança, não os via como suj eitos da suposta re­volução latino-americana. Na tarde da véspera de sua prisão e antevéspera de sua morte, uma das últimas linhas do diário de Che é relativa a uma velha camponesa, que ti­nha uma filha prostrada e outra meio anã, a quem os guerrilhei­ros deram 50 pesos para que não os denunciasse ao exército, que já os cercara. Escreveu o Che que eram "poucas as espe­ranças de que cumpra (a pala­vra) apesar de suas promes­sas". Na edição eletrônica do diário, o Centro de Estudos Che Guevara, de Cuba, esclarece que "a velha das cabras nunca foi delatora, nunca falou com os militares, não denunciou o Che. Chamava-se Epifania Cabrera e já faleceu. Foi-se para a monta­nha com as filhas, com medo das represálias do exército." A revolução sem povo sucumbiu ao silêncio da quebrada do Yu­ro. Epifania partira. •

· José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP

Domingo, 07 de outubro de 2007 (Folha de São Paulo)

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